quinta-feira, abril 21, 2005

Sua Santidade, a Liberdade

A recente morte do papa João Paulo II se apresentou para mim de maneira peculiarmente contraditória. Pois o curso de seu pontificado praticamente coincidiu com minha trajetória no catolicismo.
Em outubro de 1978, quando Karol Wojtyla foi eleito papa, completava-se 01 ano do meu batismo na Igreja Católica. Em 1991, quando ele veio ao Brasil pela 2ª vez, eu “retornava” à Igreja depois de um quase assumido compromisso com a marginalidade. E agora, em 2005, no momento de sua morte, é que eu me encontro mais convicto do que nunca da minha decisão de não mais me considerar católico (nem para, hipocritamente, escapar de reprimendas dos alienados de plantão) e plenamente escolher o exercício do chamado “livre-arbítrio”... ou será liberdade?
Batismo.
Lá estava o pequeno Luciano (pequenino, no caso), no colo de sua mãe e sob os olhares de seu pai e padrinhos, vestidos com os mais belos chapéus rodados e calças boca-de-sino. De repente me jogam uma água na cabeça e me dizem que meu “pecado original está perdoado”. Mas que pessimismo pela criação esse o da Igreja, acreditar que já se nasce pecador...Um pecado que Adão, o comedor de maçã, cometeu articulando com seu fruto de costela por, simplesmente, desobedecer a Deus. Mas se eles foram punidos porque, pelo “livre-arbítrio”, decidiram que queriam experimentar o “fruto proibido”, onde se encontra legitimidade desse “livre-arbítrio”? Fica claro que o entendimento disto remete a uma corriqueira contradição dos que, para educar “rigidamente” as crianças, impõem regras obscuras e trancadas em termo de deciframento. Então, as “crianças”, sempre espontâneas e á busca de respostas, transgridem as regras. Está explicado porque Adão não foi criado como criança, e sim já na forma de adulto “maduro”. Sendo assim, só acredito em compromisso simbolizado de ritual quando este respeita a mínima maturidade, uma mínima capacidade de se formular perguntas como: “o que significa essa água que você vai jogar na minha cabeça?”. Porque, afinal, ninguém gosta de comer fruta verde!
Crisma.
Um saudoso bispo chamado Dom Décio encobria as espinhas de minha testa com óleo, batia na minha cara e dizia que eu estava “maduro na fé”. E eu, já com 17 anos e os hormônios da libido explodindo no corpo, ainda tinha muitas e muitas perguntas antes de me considerar “maduro”:
- Porque tenho que me sentir culpado por me masturbar ou por olhar para as bundas das meninas?
- Porque o terço é tão monótono?
- Porque Jesus é branco de olhos azuis se não era europeu?
- Porque Jesus não foi político se na bíblia ele ataca ferozmente os políticos da época?
- Porque a Igreja é rica, sendo que Jesus era pobre e os padres fazem voto de pobreza?
- Porque tenho que me confessar e acreditar que estou “limpo” depois de rezar a “penitência” se, todos os dias, sou obrigado a olhar as curvas da garota mais gostosa da classe, que senta logo na minha frente?
- Porque Francisco de Assis que, andava pelado em nome da pobreza, é santo e o Padre Cícero, que profetizava o futuro dos pobres do nordeste brasileiro, não é?
- Porque eu não posso beber o vinho da comunhão, se o próprio Jesus distribuiu a bebida e mandou fazer o mesmo?
- Porque a Igreja Católica é única igreja de Deus se, antes mesmo do judaísmo, já existiam religiões?
- Porque a verdade está somente na bíblia se existem livros mais antigos que se fala de Deus e do pensar a vida?
- Porque a Igreja concentrava tanto poder se Jesus pregava o contrário?
- Porque Jesus é o salvador do mundo, sendo que Buda, Khrisna e Maomé são também considerados como o “salvador” do mundo?
- Porque ninguém me responde essas e outras perguntas?

Doutrina e disciplina.
Ao ver os outros adolescentes como eu não se inquietarem com tais questionamentos, passei a assimilar a premissa doutrinal base do catolicismo: a obediência. O incômodo interno com questões que queriam respostas teria que ser abafado pela obediência no que hoje chamo de “sistema de elo autoritário”, isto é, obedecendo ao imediato superior na igreja, você está obedecendo ao bispo, que por sua vez o arcebispo, seguindo pelo cardeal, pelo núncio apostólico, pelos prefeitos de congregações, chegando ao papa e por fim a Deus. Significa que a relação com Deus não pode ser direta, antes de passar pelo julgamento de pessoas como eu. Isto me incomodava muito porque eu já decifrava as conjunturas hipócritas que se formavam por causa disto. Porque, mesmo havendo conflitos de grupos internos da comunidade (assim como acontece em qualquer lugar) e, por conta disto, se despendia tempo para esse enfrentamento para, ao final, TODOS aceitarem a decisão do padre, mesmo esta sendo anacrônica, pois seguindo a idéia da obediência, quem estava decidindo naquele momento era “Deus”.
Este modo de se relacionar me machucava muito, mas segui realizando o “sacrifício a Deus”, como costumam dizer. Que grande e torpe contradição...
Eu tinha que me acostumar com esta condição: era “bom” para Deus que um leigo, aquele que não tem o conhecimento (seria mais verdadeiro “aquele que NÃO PODE ter o conhecimento"), seja piedoso e aceite o sentimento “normal” de CULPA por querer transcender a “ordem divina”.
Eu, catequista do Crisma.
Minha liderança me levou a ensinar a doutrina para outros jovens que assim como eu, estavam na igreja em busca de respostas e verdades. Então decidi inverter a lógica do ensino, ou seja, ao invés de dizer o que era o "certo", transferia a responsabilidade aos crismandos que, seguindo a natureza humana da evolução, questionavam legitimamente o seu tempo em choque com o tempo da igreja. Nisto, vi que eu não era o único a me sentir incomodado e que alimentar aquela culpa só me trazia sofrimento.
A partir daí seguiu-se, para eu e o restante da coordenação, o boicote político pelos membros eclesiásticos: o isolamento, a ridicularização, o enquadramento e a expulsão. Coisas de Deus? Leonardo Boff que o diga!
Este foi o divisor de águas que determinou a diferenciação entre “livre-arbítrio” e liberdade. Depois segui desvendando o contexto histórico desse conflito, derivando na minha escolha atual.
Em meados do ano 2001 escrevi o texto abaixo:
“Não me considero mais como católico. E estou, a cada dia, mais decepcionado com o catolicismo. Esta decisão não é pragmatista e estanque, mas sim fruto de um complexo processo de transformação interior a qual iniciei dentro da própria Igreja. Eu reconheço que lá eu me encontrei com Deus, mas me encontrei tanto que quis descobrir como funciona a fé e a Igreja enquanto religião. A Igreja não entendeu isto, minha relação com ela não é harmônica por conta da rejeição que temos: a minha de não aceitar dogmatismos e verdades absolutas e a da Igreja de não aceitar uma concepção universalista da fé e da realidade humana. Jesus acreditava nisto, mas seus herdeiros católicos prostituíram, historicamente, sua proposta. Apropriaram-se, por conta do poder, do cristianismo. E por isso, não sabem ainda lidar com a secularização, suas rupturas não lhe serviram de lição. No entanto, não recrimino os católicos, pois cada pessoa tem seu ritmo, suas capacidades, seus sonhos. Somente torço para que elas não se frustrem com a Igreja da mesma forma violenta que me frustrei.
Está sendo difícil assumir esta postura, pois toda ferida tem seu tempo de cura. E esta cura é difícil e muito íntima. Para dar exemplos, duas pessoas para as quais assumi esta postura disseram um “Deus te ajude”, num sentido de penalização por eu ter saído da Igreja. Como se fora dela estarei perdido. O ser humano se perde toda vez que não segue seus sentimentos. Os sentimentos sempre nos conduzem ao amor e o amor é felicidade. Portanto, estou feliz por não ser católico, não é mais uma obrigação, não é mais aquele sofrimento estranho que sentia quando entrava na missa, quando ouvia aquele moralismo hipócrita. Meu sentimento me conduz a observar a Igreja Católica e não para o tal ‘sentir com a Igreja.’
Continuo acreditando em Jesus – ele não fundou a Igreja Católica como religião – sobre um caminho de uma espiritualidade universalista, ecumênica e libertadora. Caminho difícil, mas intenso e de liberdade garantida.”

Contudo, acredito que a Igreja Católica tem um papel fundamental na história da humanidade. Mas, se ainda me havia uma poeira de esperança da Igreja mudar, esta foi soprada pelos novos ventos de Joseph Ratzinger.

Alimentar a culpa nos faz retroceder. Alimentar o amor nos faz amadurecer. Alimentar a liberdade nos faz, simplesmente, ser!

Ser é Lutar!

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