domingo, dezembro 20, 2009

O juízo do Natal


Diante de tantas obrigações sociais natalinas e "de outras coisas mais, como a simbologia dos trenós, das renas, do Papai Noel pesadamente vestido, das comidas próprias para o inverno e impróprias para o nosso verão, não seria possível ao menos mudar uma parte dos hábitos, numa perspectiva reformista, ou escalonar o Natal ao longo do ano, numa perspectiva revolucionária, autorizando a escolha individual do mês favorito do Natal?" (Boris Fausto - 20/12/2009 - Caderno Mais+ Folha de S. Paulo)

terça-feira, dezembro 15, 2009

Negro Drama: A agudez étnica em face de valores ilegítimos

Negritude Painting, "La Jungla" by Cuban-born Afro-Chinese Painter Wilfredo Lam

A seguir, analisamos a perspectiva ética da arte presente na primeira parte da música “Negro Drama”, de autoria de Racionais Mc´s, interpretada por Edy Rock e Mano Brown.






  • Negro Drama, por Racionais Mc´s (primeira parte) – análise de fundamentos éticos.






Negro drama,


Entre o sucesso e a lama,


Dinheiro, problemas,


Inveja, luxo, fama.






Os autores apresentam ponto de vista sobre a condição do negro no Brasil, referenciando o “drama” com centralidade desta concepção, situando-o como fundamento do curso histórico do negro em seu cotidiano.


Em se tratando de cotidiano, temos elementos valóricos e morais que compõem a “trama” da negritude nesta categoria, sendo o dinheiro, os problemas, a inveja, o luxo e a fama, fatores e condições que encarnam as contradições.






Negro drama,


Cabelo crespo,


E a pele escura,


A ferida, a chaga,


A procura da cura.






A cor da pele e os aspectos étnicos do negro são citados pelo autor para sustentar que tais características são as que vestem o preconceito racial no Brasil, ou seja, as derivações étnicas são postas em sociedade como pressupostos de valores preconceituosos, ligados a situações indesejadas, como uma doença que precisa ser curada ou, no mínimo, velada.






Negro drama,


Tenta ver


E não vê nada,


A não ser uma estrela,


Longe meio ofuscada.






Aqui o autor estende sua concepção crítica do cotidiano social do negro, sobre as possibilidades que o mesmo possui de vislumbrar suas perspectivas de vida que, neste contexto, são ofuscadas pela realidade da desigualdade e discriminação social que oferecem “sonhos de estrela” bastantes distantes de realização.






Sente o drama,


O preço, a cobrança,


No amor, no ódio,


A insana vingança.






Diante da distância em acessar condições sociais e afetivas com a qualidade que o capital oferece a quem lhe dá acesso sem preconceito, o negro, na forma artística desta estrofe, se apresenta como ser em constante cobrança social por conta de precisar pagar um “preço” mais alto do que o comum das relações de competição e convivência humana.


Acessar sentimentos e valores universais é para o negro, neste contexto, desafios em escala desproporcional, remetendo a deflagração de questionamentos e atitudes viscerais, ligadas ao resultado da experiência destas possibilidades.






Negro drama,


Eu sei quem trama,


E quem tá comigo,


No drama que eu carrego,


Pra não ser mais um preto fudido.


O drama da cadeia e favela,


Túmulo, sangue,


Sirene, choros e velas.






Os autores evidenciam, portanto, a clareza que têm sobre como se dão as relações sociais e cotidianas em torno das possibilidades e oportunidades éticas que são presentes para o negro, em referência a um enfrentamento constante para evitar o submetimento a uma condição de inferiorização e fracasso social.


Incluem também as situações éticas e fatídicas que comumente expõe o negro no Brasil, a partir das vulnerabilidades que são submetidos socialmente.










Passageiro do Brasil,


São Paulo,


Agonia que sobrevive,


Em meia às zorras e covardias,


Periferias, vielas e cortiços,


Você deve tá pensando,


O que você tem haver com isso.






Trazem para a música a angústia da naturalidade negra e paulistana, de modo a evidenciar a exposição histórica desta etnia à precarização da moradia e à depreciação ética existente nas relações violentas que muitas vezes estão inseridos e que passam a ser referência de valor social, em detrimento do acesso às oportunidades gestadas para benefício do desenvolvimento humano de forma universal.


Indagam, ao final da estrofe, qual o papel que a sociedade tem neste contexto.






Desde o início,


Por ouro e prata,


Olha quem morre,


Então veja você quem mata,


Recebe o mérito a farda


Que pratica o mal,


Me ver


Pobre, preso ou morto,


Já é cultural.






Neste ponto, os autores denunciam de forma crítica a concepção histórica oficial do Brasil que valorizam o colonizador, o bandeirante, o senhor-de-engenho como heróis nacionais, pelas suas “conquistas” e “bravuras”.


Mas que, também neste enredo, omitem a dívida social e moral que resulta desta concepção histórica e que, de maneira e roupagem diferenciadas, ainda debitam de nossas possibilidades éticas de se fundar uma concepção histórica a partir dos subalternos e subalternizados: os que morreram e ainda morrem em nome de um “bem social” que não inclui a população negra, marginalizando-a culturalmente a fins trágicos, às penalidades óbvias e, muitas vezes, à morte desejada.






Histórias, registros,


Escritos,


Não é conto,


Nem fábula,


Lenda ou mito,


Não foi sempre dito,


Que preto não tem vez,


Então olha o castelo irmão,


Foi você quem fez cuzão,






Em continuidade à estrofe anterior, os autores afirmam que tal leitura histórica, bem como os fatos, se expressa no concreto e não são obras fictícias, mesmo sabendo que tais condições já estão no campo da banalidade ética.


E o “castelo” que os autores citam, se refere aos sonhos fabulosos oferecidos pelo capital, patrocinados historicamente pelas classes dominantes.










Eu sou irmão,


Dos meus trutas de batalha,


Eu era a carne,


Agora sou a própria navalha,


Tim..tim..


Um brinde pra mim,


Sou exemplo, de vitórias,


Trajetos e glórias.






A partir deste ponto da letra musical, os autores passam a resgatar os rebatimentos dos enfrentamentos que o negro colhe enquanto vitórias.


Evidentemente que falam de suas vitórias enquanto artistas reconhecidos socialmente, mas também retratam todas as conquistas sociais dos negros brasileiros, as quais são compostas de poucos companheiros e que, de tão intensas e sofridas, lançam a sensação de que são vitórias ímpares e que devem ser exemplos diante de tantas frustrações.






O dinheiro tira um homem da miséria,


Mas não pode arrancar,


De dentro dele,


A favela,


São poucos,


Que entram em campo pra vencer,


A alma guarda,


O que a mente tenta esquecer,






Aqui os autores apresentam a realidade ética do negro que, conscientemente, alcança mobilidade social diferente e com mais oportunidades do que a maioria está submetida.


Ter referencia moral da favela não quer dizer que o negro que ascendeu socialmente permaneça se sentindo e se relacionando socialmente de forma subalterna. Porém, isto não significa também que os dilemas e fatos presenciados no passado são descartados nos fundamentos desta trajetória histórica, percorrida por poucos, seja por coragem, seja por oportunidade raramente aproveitada.






Olho pra trás,


Vejo a estrada que eu trilhei,


Mó cota


Quem teve lado a lado,


E quem só ficou na bota,


Entre as frases,


Fases e várias etapas,


Do quem é quem,


Dos mano e das mina fraca,






Os autores, nesta estrofe, analisam suas relações sociais no âmbito dos rebatimentos ocorridos na trajetória histórica, evidenciando o nível de participação social e suas influências éticas neste processo.






Negro drama de estilo,


Pra ser,


E se for,


Tem que ser,


Se temer é milho.


Entre o gatilho e a tempestade,


Sempre a provar,


Que sou homem e não covarde.






Neste ponto, evidencia-se a práxis que o negro desenvolve no seu cotidiano social, de modo a sedimentar uma postura de enfrentamento das mazelas sociais, sólida o suficiente para responder às vicissitudes mais agudas que surgem neste contexto.






Que deus me guarde,


Pois eu sei,


Que ele não é neutro,


Vigia os ricos,


Mais ama os que vêm do gueto,






Os autores recuperam suas religiosidades para fundamentar valoricamente a ótica que possuem sobre supostas possibilidades sobrenaturais que influenciam as relações humanas.


Destacam, nesse intento, duas classes sociais (ricos e pobres) que estariam sob a tutela de uma mesma divindade, dando preferência sentimental para os pobres e vigilância para os ricos. Aqui, contraditoriamente, parecem justificar que a divindade, mesmo “permitindo” a desigualdade, está do lado dos que mais sofrem em decorrência desta.






Eu visto preto,


Por dentro e por fora,


Guerreiro,


Poeta entre o tempo e a memória.


Ora,


Nessa história,


Vejo dólar,


E vários quilates,


Falo pro mano,


Que não morra, e também não mate,






A negritude, enquanto propositura cultural de resistência social é exaltada pelos autores nesta estrofe, de modo a simbolizar a poesia de suas letras musicais como arma numa guerra que inclui o que se registra na memória e o que se passa no cotidiano social.


E para os negros que alcançam a constituição desta postura, os autores deixam a recomendação ética de que, mesmo tendo a “riqueza” em mãos, não cedam às ousadias que levam à morte ou às que a provocam para os que concorrem ou ameaçam esta conquista.






O tic tac,


Não espera veja o ponteiro,


Essa estrada é venenosa,


E cheia de morteiro,


Pesadelo?


É um elogio,


Pra quem vive na guerra,


A paz nunca existiu,


No clima quente,


A minha gente soa frio,


Vi um pretinho,


Seu caderno era um fuzil.


(...)






Os autores terminam a primeira parte da música, remetendo ao avançar veloz do tempo como ponto de alerta para quem se propõe a superar a condição de inferioridade social.


Ao ressaltar a dureza a ser vivenciada nesta trajetória, os autores evidenciam as contradições encontradas na periferia das cidades (locais onde se concentra a maioria da população negra no Brasil) de modo a contrastar o alcance que alguns valores sociais nestes âmbitos sócio-territoriais, ou seja, o tempo que se passa é o mesmo para todos os humanos, mas para os que vivenciam o cotidiano da periferia este tempo remete a enfrentamentos mais agudos e imediatos, os quais impõem ao sujeito escolhas precárias (as quais são, muitas vezes, as escolhas possíveis) ou a determinação social entre a luta por liberdade dentro do escopo histórico da cultura e presença negra na sociedade brasileira.














Considerações Finais






Podemos constatar na análise proposta neste trabalho que os fundamentos éticos presentes na concepção artística da música posta como objeto de pesquisa estão diretamente ligados a uma concepção histórico-crítica da constituição da etnia negra brasileira. Os autores articulam os valores que permeiam o enfrentamento do preconceito e discriminação social da população e cultura negra no Brasil, evidenciando as nuances éticas compostas no enredo do cotidiano destas relações sociais.


Evidente que as contradições observadas nesta concepção artística expõem possíveis fragilidades discursivas, quando se pensa (equivocadamente) que uma arte musical deva retratar fiel e literalmente um posicionamento político ou filosófico.


Mas, considerando a contradição como elemento resultante da alienação moral constituída historicamente na concepção oficial da história cultural brasileira, entendemos que tal proposta artística transpassa esses meandros, oferecendo diferente oportunidade ética de se conceber a cultura brasileira e suas influências recebidas ao longo da constituição da sociedade brasileira, a partir do ponto de vista do negro que faz a luta social com consciência de classe e de origem étnica.


Pois, como afirma Barroco, “quando a ética se realiza como saber histórico, tendo por finalidade um conhecimento radical e totalizante, pode voltar-se para a crítica da moral cotidiana, para o desvelamento da alienação moral, os fundamentos e o significado dos valores, para a apreensão das possibilidades de objetivação concreta das exigências éticas humano-genéricas” (2008, p. 83), isto é, o humano alcança maior plenitude enquanto ser social, na medida em que supera as alienações morais que o distanciam das conquistas e possibilidades de liberdade que a humanidade oferece historicamente.